quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Mancha Azul e Gaviões Alvinegros sem carnaval

Vistos etc. 

1. Este mandado de segurança vem da Sociedade Mancha Azul e da Sociedade Recreativa Mais do que Escola de Samba Gaviões Alvinegros em relação a ato do Comandante do 4º Batalhão de Polícia Militar e do Secretário de Turismo, Cultura e Esporte do Município de Florianópolis.

Alegam que, entidades carnavalescas, vêm participando há alguns de anos de desfiles competitivos de carnaval, tendo o direito adquirido de reiterarem a situação neste ano. Insurgem-se contra ato (dizem) abusivo da autoridade militar, que por suposições envolvendo torcidas organizadas de futebol com designações semelhantes, vetou a atuação delas nos iminentes festejos carnavalescos. Relata que há liberdade de associação e se deve impedir a insegurança jurídica, de sorte que é merecida a ordem para garantir os desfiles. 

2. Começo por tratar de coisas óbvias. Está na Constituição que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei. Lei está, em princípio, em sentido amplo, de norma jurídica, mas como se têm em mira restrições à liberdade de agir, quer-se que ela não fique subordinada a atos administrativos escoteiros. 

A Polícia Militar, órgão do Poder Executivo, não dita regras de conduta. Não pode, dessa forma, impor a forma como se dará os desfiles de carnaval; muitíssimo menos pode vetar que alguém se integre ou se afaste dos festejos. É importante, ainda que seja evidente, reforçar essas circunstâncias para que se evitem compreensões distorcidas. 

Polícia Militar ou Ministério Público, por exemplo, não impõem o que pode ou o que não pode ser feito. Isso é missão do Poder Legislativo, mediante provimentos prévios. Eu não referendo, portanto, (ao menos é assim noticiado rotineiramente) que uma autoridade administrativa subverta a ordem constitucional, avocando competência de que não dispõe. Muito menos a menção a um genérico poder de polícia é aceitável. Ele representa atribuição subserviente à lei. Trata-se de restringir liberdades na medida em que já delimitadas previamente pela norma tipicamente jurídica. 

O órgão do Poder Executivo deve ser vassalo, no cumprimento da tal competência, àquilo que foi imposto anteriormente pelo órgão próprio. Não lhe toca criar para o caso concreto uma solução que considere adequada. O poder de polícia é infralegal. Eu não iria referendar, em outros termos, uma imposição policial para que as impetrantes não participassem do carnaval. 

3. O processo, todavia, não dá conta de que tal fenômeno tenha ocorrido. Ela, pelo que se vê dos documentos juntados, participou de reuniões de planejamento do Carnaval e opinou que as impetrantes não deveriam desfilar. Deu recomendação, fez sugestão. Providenciou relato à luz de sua experiência. Não tomou decisão ou trouxe para si competência que não tem. Emitiu apenas um parecer técnico, não lhe cabendo deliberar conclusivamente, nem sequer insinuando que a posição assumida era cogente para seus destinatários. 

Eu não posso identificar, na situação, algum ato restritivo de direito. A Polícia Militar é órgão relevante, tem missão de velar pela segurança pública e pode se ver, entre seus amplos misteres, a enunciação de pareceres sobre esses temas. Como dito, o que seria inaceitável seria a PM meramente vetar a participação de certa agremiação em desfile. Quanto ao Estado de Santa Catarina (que estaria na causa mediante a notificação da autoridade policial militar), extingo a causa por falta de interesse de agir. 

4. Remanesce a posição do Município de Florianópolis, em face do qual se noticia que realmente poderá proibir a participação das impetrantes. Ainda que se diga que o desfile é organizado por entidade particular - uma associação de blocos - é inegável que o evento tem conotação pública. Ocorre em local de titularidade do Município e sob a notória organização estatal. O corre-corre que vejo aqui da minha janela na Passarela do Samba só pode er imputado à Administração. O caráter competitivo associado ao desfile até pode ser debitado a outra entidade, mas o festejo em si, nos termos como ocorre, está sob os auspícios da Prefeitura. Em tal contexto, cabe ao Município identificar a conveniência, antes de mais nada, de realizar um desfile patrocinado por recursos públicos e em dependências da Fazenda

Em uma festa que ele realiza, para usar de termos mais vulgares, deve intervir quem ele convidar. O que não se pode dar, por força da impessoalidade (garantida constitucionalmente), é a eleição de critérios odiosos, marcados por preferências idiossincráticas ou por valores menores

A segurança não é, entretanto, algo a ser desprezado. Por mais que as impetrantes se esforcem para renegar proximidade com, respectivamente, as torcidas organizadas mais tradicionais do Avaí e do Figueirense, o esforço é inglório. Se não houvesse essa identificação, por que se usariam os mesmos nomes e símbolos, enaltecendo os times de preferência? Pode haver diferenças burocráticas, como estatutos e números de inscrições tributárias distintos, mesmo dirigentes diversos, mas é muito claro que a menção a um nome ou outro desperta as paixões clubísticas

Esses eventos têm potencial para gerar conflitos, seja pela disputa em si, seja por adversidades que vêm da rivalidade do futebol; e há, pelo menos, o consumo de álcool em larga escala. Eu lamento muitíssimo reconhecer que existe um clima beligerante quando se fala desses encontros. Há no futebol e é plausível estender que isso possa se repetir nos arredores da passarela. 

Dessa forma, eu entendo que toque ao Município, como promotor do evento, fazer juízo crítico a respeito da conveniência dessa ou daquela entidade integrar os desfiles. 

Como já dito, não poderia fazê-lo se maneira arbitrária, por comodismo ou por razões ocultas. Não há contradição com aquilo que foi antes dito. O Município tem a competência para promover festejos carnavalescos. É assunto de seu peculiar interesse, para usar a expressão que era usada tradicionalmente em nosso direito constitucional. Cabe-lhe, por extensão e decorrência natural, organizar - sob critérios objetivos - o evento. 

Como dito, a segurança é ponto sensível e que deve ser ponderado. Essa apuração cabe à autoridade administrativa; e que se optar por posicionamento mais rígido, estará bem fundamentada nas razões trazidas pela Polícia Militar. Não vejo, portanto, em face da autoridade remanescente, indicativos de conduta abusiva, razão pela qual nego a liminar

5. Quero fazer alguns registros adicionais - em caráter pessoal. Teria satisfação em dar a liminar. Estaria prestigiada a liberdade; seria um voto de confiança nas autoras, que se uniram para conseguir um objetivo comum. Só que eu não consigo omitir - em que pese à simpatia que a pretensão, abstratamente tratada, me traz - que há plausíveis riscos envolvidos. Um evento como o almejado não fica limitado àquilo que os dirigentes das agremiações esperam; há potencial muito nítido para transtornos, e eles podem ser sérios. 

Desejo deixar registrado que não me cativam os discursos preconceituosos, que associam necessariamente torcedores de futebol à violência. Muito menos me seduzem descrições hipócritas, que querem afastar da paixão por times de futebol a irreverência ou mesmo o extravasamento de emoções; enfim, que querem ocultar o direito de livre expressão, em mundo de não-me-toques. Essa defesa é farisaica e tem minha aversão. 

Quem tem um clube irá enaltecê-lo, tanto quanto irá detratar (nem sempre com palavras sutis ou gestos elegantes) o rival. Eu vou ao campo e faço isso tudo - palavras pouco sutis e gestos menos elegantes. Mas terei que suportar o oposto. Tenho a liberdade constitucional de agir da primeira forma, tanto quanto tenho a imposição constitucional de suportar o que vem do outro lado. É um clichê, mas sou obrigado a reiterar

O problema não estará na exposição da rivalidade, até mesmo no esquecimento da plena elegância. Ele surgirá quando algumas pessoas, usando as distinções de grupos como um pretexto, cultua a violência física. Usam do futebol com um pretexto, uma situação meramente circunstancial para dar vazão a instintos atávicos. Aí é que se lamenta que os clubes acabem ficando estigmatizados pela postura de uma minoria (perdoado novamente o lugar-comum). (A crença no fato de a violência ser presentemente uma exceção, mas ter uma marca atrelada à história humana, mas contida pelo processo civilizatório, vem de instigante livro de Steven Pinker: Os Anjos Bons da Nossa Natureza - Por que a Violência Diminuiu, Companhia das Letras, 2013.) Por isso, ainda que não fosse a escolha que desejaria, opto pela prudência nesta decisão. 

6. Assim: 

a) Julgo extinto o processo sem resolução do mérito em face do Comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar

b) Nego a liminar em face relação à autoridade remanescente, o Secretário de Turismo, Cultura e Esporte do Município de Florianópolis

Indefiro, por fim, a gratuidade (STJ, Súmula 409; STF, AgRg no RE 192.715-SP, rel. Min. Celso de Mello), pois a pessoa jurídica deve comprovar a sua necessidade para gozar da mercê. 

Concedo prazo de dez dias para o recolhimento das custas. 

Florianópolis, 26 de fevereiro de 2014. 

Hélio do Valle Pereira 
Juiz de Direito 
Autos 0308636-76.2014.8.24.0023

3 Comentários:

Marcos Paulo Silva dos Santos disse...

Prezado André,
Informo o numero do Agravo de instrumento em mandado de segurança distribuído pela Mancha Azul e Gaviões: 2014.011730-8.
Abs

André Tarnowsky Filho disse...

Valeu, Marcos Paulo!

Estamos na torcida!

Abraço!

Gustavo de Carvalho Rocha disse...

Sou Torcedor do Figueirense e como Advogado que luta pela Democracia e o verdadeiro Estado Democrático de Direito, entrei na briga com o Dr Marcos no Agravo de Instrumento.
Vamos torcer.

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