terça-feira, 14 de janeiro de 2020

A FACE CINZA DA BOLA, by RC

Concluído meu curso de direito em 68, rumei em 69 para o Paraná, com o diploma, a cara e a coragem, numa aventura profissional. Fixei-me na rica região do café, numa cidade pequena, uns poucos quilômetros acima de Maringá. Na ilha eu deixara com tristeza o mar, alguns amigos, os sentimentos, a noiva, o Avaí.

Na minha chegada ao destino, observei que a coisa mais parecida com o mar eram as imensas lavouras de café, que ondeavam, ora subindo, ora descendo pelas colinas. As pequenas cidades eram ilhas perdidas naquele mar. Com quem conversar? Que conversas ter? Foi a pergunta que me fiz enquanto observava as pessoas que passavam, com sua rude naturalidade. 

Aluguei quarto no único hotel da cidade, doze compartimentos de madeira, seis em cada lado, separados por um corredor, cada qual com uma pequena basculante para arejar. Um banheiro aos fundos, numa dependência separada do corpo do hotel. Não tinha planos de morrer de angústia e tédio, então fui à Maringá, comprei livros, coletâneas de contos, romances.

Ocorreu-me que na cidade pessoas deviam jogar futebol. Perguntei no hotel, disseram: Ah, no estádio  jogam, sábado à tarde. E me deixam jogar? Deixam, é pelada, sempre tem uma vaga. 

Com efeito, no sábado, chuteira na mão, me apresentei no precário estádio, e fui recebido com simpatia. Escolhi jogar de atacante e concordaram, sem objeções. Com poucos minutos de jogo percebi que alguém se destacava com um futebol de muita qualidade em relação a todos os demais. O sujeito possuía um biotipo largo, um porte que lembrava o Gerson, da Seleção. Havia de ter entre 45 e 50 anos de idade. Um bigode denso e escuro e um dente de ouro frontal. Fazia passes curtos e lançamentos à distância com perfeição, ocupando a posição de cabeça de área. Num lançamento forte e alto em sua direção, ele ergueu-se no ar e com a flexibilidade que a idade ainda não lhe tirara de todo, fez a bola colar em seu peito, com a segurança e a graça dos verdadeiros craques, coisa bonita de ver.

Era argentino. Encerrado o jogo dirigi-me a ele, dizendo: Você já jogou profissional. Sua resposta veio em portunhol: Si, Estudiantes, Nacional de Montevideo, Colo Colo de Chile, en Mexico tambien, enfrentê Botafogo de Garrincha, de Nilton Santos. Tengo fotos, jornales...

Depois fiquei sabendo, era sapateiro na cidade, consertava sapatos. Possivelmente não soubera administrar com sabedoria o dinheiro dos bons tempos. Cheguei a vê-lo batendo solas contra uma placa de ferro apoiada sobre sua coxa direita; não sei como aguentava o tranco.

* Roberto Costa, o 'RC', é associado do Avaí FC

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