sábado, 18 de abril de 2020

DA ARTE DE BEM CONSOLAR, by RC


O Grupo Escolar Lauro Müller, onde fiz o curso primário, funcionava em dois prédios assentados num mesmo terreno. O mais novo, denominado moderno, mostrava uma arquitetura despojada, mas sufocante, sem vida. No mais antigo as salas haviam sido concebidas com inteligência, pé direito elevado, duas janelas enormes em cada uma das grossas paredes laterais, o ar entrando, circulando, saindo; carteiras antigas em madeira de lei com pés e estrutura ornamentais em ferro fundido, coisas para durarem cem anos, coisas de um tempo mais ético, ou menos corrupto.

Havia no prédio mais antigo, um pátio interno, rebaixado, formando algo como se fora uma grande piscina sem água, com piso de cerâmica, contornado por uma varanda extensa em toda sua quadratura. Local sempre muito limpo e cuidado. Todo dia, antes do início das aulas, a diretora dona Maria da Glória, muito alta, muito magra, imperativa, mandava perfilarem-se no pátio os meninos e meninas, então discursava para incutir-lhes formação, conselhos sobre higiene, respeito aos mais velhos, moral.

A luz do dia e o ar entravam pelas grandes janelas do prédio antigo. Não lembro o que exatamente lecionava dona Anunciação naquela manhã, mas lembro que bateram à porta e ela deslocou-se para atender. Minha irmã, muito menina, surgiu acompanhada de um bedel. Após os pedidos de licença e respeitos de praxe e da época, ouvi o serviçal dizer à professora que a menina viera ao colégio chamar o irmão, cujo tio acabara de falecer.

Tio João, de parte da família de minha mãe, naquela manhã acabara de falecer em nossa casa. Não fora uma pessoa bem sucedida na vida. Com uma aposentadoria da Previdência, ao que parece, vivia modesta e maritalmente com sua companheira. Era comum visitar-nos de surpresa. Vinha abraçar minha mãe, matar suas saudades, apreciar o café cheiroso que ela fazia, às vezes ficando para almoçar e sempre dizendo coisas elogiosas sobre nós, seus sobrinhos.

Caminhando com minha irmã, vencemos em pouco tempo o pequeno quilômetro que separava o colégio de nossa casa. Deparamo-nos então com nossa mãe na sala de jantar, a enxugar suas lágrimas, a vizinha da casa ao lado a confortá-la, a falar coisas como a vontade de Deus, e que a vida é assim mesmo, que disso ninguém escapa. Em seguida, outras duas senhoras da vizinhança vieram em apoio, em cada rosto a expressão inconfundível da condolência. Nosso pai, por uma questão de prazos essenciais em suas atribuições, não pôde largar o trabalho, viria ao meio-dia.

Puseram-me diante do morto, talvez a título de despedida. Morrera em minha cama, onde permanecia, onde parecia dormir. O grisalho dos cabelos e do bigode basto, somados à palidez mortal do rosto e das mãos, impressionaram meus olhos de menino, num repente acentuara-se o seu ar de velhice. Mas curiosamente a sua morte não acarretou sobre mim um impacto considerável, certamente pela falta de uma convivência continuada.

Deixei o quarto, deixei o defunto em sua paz. Então pude perceber que a uma mulher de cerca de uns trinta anos, muito ávida por detalhes, minha mãe explicava o acontecido. Tio João chegara dizendo-se meio enjoado, alguma indisposição do fígado, ele supunha. Recusara o chá sugerido, preferiu café e perguntara se podia deitar um pouco, o que fez. Quando lhe levou o café, minha mãe pensou que Tio João adormecera, mas ao tocá-lo...

- Pois então não chore mais, dona Maria! Console-se. – Disse a mulher. E, espalmadas as mãos, como a reforçar o alto e bom som do que iria dizer, acrescentou: - Que morte linda! Acho que morreu dormindo, não sofreu, não disse um ai. Meu Deus! É a morte que eu quero pra mim!...

* Roberto Costa, o "RC", é associado do Avaí FC

2 Comentários:

AdrianoBasco disse...

"Tempo mais antigo e menos corrupto" formaram as dinastias Konder e Bornhausen, que biliardaram só vivendo da administração pública...

Detalhe: Madeira de lei é a que tiraram de nossas florestas... Sumiram com o jacarandá, o mogno pra fazer... carteiras!

De resto viva nosso Leão!

Roberto disse...

Com efeito, ADRIANO, mas repara que eu disse MENOS corrupto.
É que hoje em dia a corrupção é regra geral, a administração idônea, quando acontece, é exceção à regra e causa espanto.
Mas considero justa a tua indignação.
Detalhe, antes o jacarandá pra fazer carteiras de estudantes, que escrivaninhas e móveis de luxo dos corruptos. Abraço. RC

Mas não tiro tua razão em protestar

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