DA ARTE DE BEM CONSOLAR, by RC
O Grupo Escolar Lauro Müller, onde fiz o curso primário, funcionava
em dois prédios assentados num mesmo terreno. O mais novo, denominado moderno,
mostrava uma arquitetura despojada, mas sufocante, sem vida. No mais antigo as
salas haviam sido concebidas com inteligência, pé direito elevado, duas janelas
enormes em cada uma das grossas paredes laterais, o ar entrando, circulando, saindo;
carteiras antigas em madeira de lei com pés e estrutura ornamentais em ferro
fundido, coisas para durarem cem anos, coisas de um tempo mais ético, ou menos
corrupto.
Havia no prédio
mais antigo, um pátio interno, rebaixado, formando algo como se fora uma grande
piscina sem água, com piso de cerâmica, contornado por uma varanda extensa em
toda sua quadratura. Local sempre muito limpo e cuidado. Todo dia, antes do
início das aulas, a diretora dona Maria da Glória, muito alta, muito magra,
imperativa, mandava perfilarem-se no pátio os meninos e meninas, então
discursava para incutir-lhes formação, conselhos sobre higiene, respeito aos
mais velhos, moral.
A luz do dia e o ar entravam pelas grandes
janelas do prédio antigo. Não lembro o que exatamente lecionava dona Anunciação
naquela manhã, mas lembro que bateram à porta e ela deslocou-se para atender.
Minha irmã, muito menina, surgiu acompanhada de um bedel. Após os pedidos de
licença e respeitos de praxe e da época, ouvi o serviçal dizer à professora que
a menina viera ao colégio chamar o irmão, cujo tio acabara de falecer.
Tio João, de
parte da família de minha mãe, naquela manhã acabara de falecer em nossa casa.
Não fora uma pessoa bem sucedida na vida. Com uma aposentadoria da Previdência,
ao que parece, vivia modesta e maritalmente com sua companheira. Era comum
visitar-nos de surpresa. Vinha abraçar minha mãe, matar suas saudades, apreciar
o café cheiroso que ela fazia, às vezes ficando para almoçar e sempre dizendo
coisas elogiosas sobre nós, seus sobrinhos.
Caminhando com minha irmã, vencemos em pouco
tempo o pequeno quilômetro que separava o colégio de nossa casa. Deparamo-nos
então com nossa mãe na sala de jantar, a enxugar suas lágrimas, a vizinha da
casa ao lado a confortá-la, a falar coisas como a vontade de Deus, e que a vida
é assim mesmo, que disso ninguém escapa. Em seguida, outras duas senhoras da
vizinhança vieram em apoio, em cada rosto a expressão inconfundível da
condolência. Nosso pai, por uma questão de prazos essenciais em suas
atribuições, não pôde largar o trabalho, viria ao meio-dia.
Puseram-me diante
do morto, talvez a título de despedida. Morrera em minha cama, onde permanecia,
onde parecia dormir. O grisalho dos cabelos e do bigode basto, somados à palidez
mortal do rosto e das mãos, impressionaram meus olhos de menino, num repente
acentuara-se o seu ar de velhice. Mas curiosamente a sua morte não acarretou
sobre mim um impacto considerável, certamente pela falta de uma convivência
continuada.
Deixei o quarto,
deixei o defunto em sua paz. Então pude perceber que a uma mulher de cerca de
uns trinta anos, muito ávida por detalhes, minha mãe explicava o acontecido.
Tio João chegara dizendo-se meio enjoado, alguma indisposição do fígado, ele
supunha. Recusara o chá sugerido, preferiu café e perguntara se podia deitar um
pouco, o que fez. Quando lhe levou o café, minha mãe pensou que Tio João
adormecera, mas ao tocá-lo...
- Pois então não
chore mais, dona Maria! Console-se. – Disse a mulher. E, espalmadas as mãos,
como a reforçar o alto e bom som do que iria dizer, acrescentou: - Que morte
linda! Acho que morreu dormindo, não sofreu, não disse um ai. Meu Deus! É a
morte que eu quero pra mim!...
* Roberto Costa, o "RC", é associado do Avaí FC
"Tempo mais antigo e menos corrupto" formaram as dinastias Konder e Bornhausen, que biliardaram só vivendo da administração pública...
Detalhe: Madeira de lei é a que tiraram de nossas florestas... Sumiram com o jacarandá, o mogno pra fazer... carteiras!
De resto viva nosso Leão!
Com efeito, ADRIANO, mas repara que eu disse MENOS corrupto.
É que hoje em dia a corrupção é regra geral, a administração idônea, quando acontece, é exceção à regra e causa espanto.
Mas considero justa a tua indignação.
Detalhe, antes o jacarandá pra fazer carteiras de estudantes, que escrivaninhas e móveis de luxo dos corruptos. Abraço. RC
Mas não tiro tua razão em protestar
Postar um comentário
A MODERAÇÃO DE COMENTÁRIOS FOI ATIVADA. Os comentários passam por um sistema de moderação, ou seja, eles são lidos, antes de serem publicados pelo autor do Blog.