BORGES, OU, UMA AVENTURA DA BOLA, by RC
Existe um futebol, não menos excitante que o profissional, que apenas de passagem recebe alguma referência na mídia, uma foto amarelada num canto de página, uma menção saudosa cobrindo falta de notícia melhor na coluna esportiva de alguém. É o futebol da várzea, ou dos fominhas da bola, dos craques frustrados, galeria dos quais com muito prazer fiz parte. Nesse tempo de entressafra do futebol profissional, é justo recorrermos a ele.
Há sempre, nesse meio varzeano, aqueles que se destacam com natural vocação para cartolas, ou presidentes. São os que tomam a si a responsabilidade da organização. Gerenciam a lavação das camisas e as conduzem ao local dos jogos, agenciam esses jogos, convocam os atletas, escalam a equipe.
O dentista Carlos Alberto Borges, avaiano, já falecido, mais conhecido como Borges, tinha esse perfil. Gerenciava o Acadêmicos, time que organizara, composto de estudantes universitários, do qual fiz parte, e que, como conquista maior registra um empate em 3 a 3, em jogo treino no "Campo da Liga", contra os profissionais do Avaí.
Pois aconteceu, década de sessenta, que o Borges contratou jogo contra os funcionários do Hospital Santa Tereza, casa especializada no tratamento da Hanseníase, doença popularmente conhecida como lepra.
Como garantia da saúde dos atletas sob seu comando, Borges fez incluir cláusula específica no acordo não formalizado, de cavalheiros, de que o seu adversário sob nenhuma hipótese faria incluir no jogo algum doente do Hospital. Selado o acordo com um aperto de mão, no dia e hora marcados fomos para o jogo, a realizar-se no campo do próprio hospital.
Deram-nos um vestiário onde se viam pelo chão resquícios preocupantes de pó de cal, mas nada que pudesse anular nossa fome de bola, nosso ânimo de correr os noventa preciosos minutos.
Fomos para o aquecimento no gramado, durante o qual vimos adentrar o time da casa e, fazendo-nos tremer dos pés à cabeça, de preocupação e indignação pela ruptura do acordo, o primeiro da fila, de notável porte físico, ostentava expressiva mancha escura na face esquerda, a qual alongava-se pescoço abaixo, perdendo-se por sob a camisa até lugar incerto e não sabido da anatomia do gigante. De nada valeram as reclamações, as ameaças de não jogar, as críticas ao descaso com os princípios éticos. "É doente curado, remido do mal" e, com essa afirmativa, o representante do adversário impôs a sua presença no jogo, atitude de fazer inveja a qualquer dotô mandatário de federação.
É claro que a fome de bola preponderou. Entramos a jogar e, já por volta de cinco minutos de jogo, Borges, iniciando arrancada pelo meio de campo, aplicou drible sobre ninguém menos que o gigante da mancha, que optou por matar a jogada, agarrando nosso herói firmemente pelo pescoço, jogando-o ao chão e caindo por sobre ele.
Pelo menos por uns dez dias compartilhei, na condição de vizinho, dos temores do Borges com relação aos perigos da temível doença. Felizmente, nada além de uma aventura da bola, nada além de preocupações, nada que o tempo não resolvesse, como de fato resolveu.
* Roberto Costa, o "RC", é associado do Avaí FC. Texto publicado originalmente em 11/12/2014. Arte acima: blog Contos da Várzea
Há sempre, nesse meio varzeano, aqueles que se destacam com natural vocação para cartolas, ou presidentes. São os que tomam a si a responsabilidade da organização. Gerenciam a lavação das camisas e as conduzem ao local dos jogos, agenciam esses jogos, convocam os atletas, escalam a equipe.
O dentista Carlos Alberto Borges, avaiano, já falecido, mais conhecido como Borges, tinha esse perfil. Gerenciava o Acadêmicos, time que organizara, composto de estudantes universitários, do qual fiz parte, e que, como conquista maior registra um empate em 3 a 3, em jogo treino no "Campo da Liga", contra os profissionais do Avaí.
Pois aconteceu, década de sessenta, que o Borges contratou jogo contra os funcionários do Hospital Santa Tereza, casa especializada no tratamento da Hanseníase, doença popularmente conhecida como lepra.
Como garantia da saúde dos atletas sob seu comando, Borges fez incluir cláusula específica no acordo não formalizado, de cavalheiros, de que o seu adversário sob nenhuma hipótese faria incluir no jogo algum doente do Hospital. Selado o acordo com um aperto de mão, no dia e hora marcados fomos para o jogo, a realizar-se no campo do próprio hospital.
Deram-nos um vestiário onde se viam pelo chão resquícios preocupantes de pó de cal, mas nada que pudesse anular nossa fome de bola, nosso ânimo de correr os noventa preciosos minutos.
Fomos para o aquecimento no gramado, durante o qual vimos adentrar o time da casa e, fazendo-nos tremer dos pés à cabeça, de preocupação e indignação pela ruptura do acordo, o primeiro da fila, de notável porte físico, ostentava expressiva mancha escura na face esquerda, a qual alongava-se pescoço abaixo, perdendo-se por sob a camisa até lugar incerto e não sabido da anatomia do gigante. De nada valeram as reclamações, as ameaças de não jogar, as críticas ao descaso com os princípios éticos. "É doente curado, remido do mal" e, com essa afirmativa, o representante do adversário impôs a sua presença no jogo, atitude de fazer inveja a qualquer dotô mandatário de federação.
É claro que a fome de bola preponderou. Entramos a jogar e, já por volta de cinco minutos de jogo, Borges, iniciando arrancada pelo meio de campo, aplicou drible sobre ninguém menos que o gigante da mancha, que optou por matar a jogada, agarrando nosso herói firmemente pelo pescoço, jogando-o ao chão e caindo por sobre ele.
Pelo menos por uns dez dias compartilhei, na condição de vizinho, dos temores do Borges com relação aos perigos da temível doença. Felizmente, nada além de uma aventura da bola, nada além de preocupações, nada que o tempo não resolvesse, como de fato resolveu.

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