terça-feira, 31 de dezembro de 2013

IMPACTO DA BOA AÇÃO, by Roberto Costa

Não faz muito. Eu tinha sessenta e nove anos quando a bondade, a boa intenção, a necessidade de alguém fazer sua boa ação do dia, me atingiram de forma contundente. Sessenta e nove, esse número de algarismos invertidamente gêmeos, tornado obsceno pela malícia de todos nós.

Não é pouca idade sessenta e nove verões, mas mantinha-se dentro de mim, comandando tudo e regozijando-se do próprio vigor, um jovem distraído, que ainda corria atrás de bola e comemorava com amigos, enxugando várias após suar no jogo, sem espaços para reumatismos, sem as dores, nem outras queixas comuns à idade. 

Mas como disse no início, a bondade, a boa intenção, ou a necessidade de alguém fazer sua boa ação me atingiram. Era uma tarde calma e clara, e eu seguia, ainda no bairro, com destino ao centro, quando o carro balançou a traseira e fez o ruído característico de pneu furado. Encostei e fui ao porta-malas, pegando a chave de roda e o estepe, dispondo-me a fazer a troca, como sempre fizera, sem problemas. 

De repente, um carro que passava encostou à direita. Saiu dele um jovem esbanjando disposição e que, se aproximando e falando no tom imperial dos jovens de hoje, foi logo dizendo: "Deixa que eu troco, deixa que eu troco."

Nenhum argumento meu, de que podia fazer com tranquilidade a troca, de que ele não precisava perder o seu tempo, nada o demoveu. Tomou-me das mãos a chave de roda, afrouxou os parafusos, colocou o estepe e completou o serviço, dando-se ao trabalho de recolocar tudo ordeiramente no porta-malas. Agradeci-lhe e percebi claramente que saiu com o peito inflado de orgulho, um orgulho juvenil já muito raro na juventude descentrada de hoje em dia.

Entrei no carro mas não arranquei de vez. O episódio colocara-me num momento reflexivo. Como se tivesse recebido um direto na testa desferido por um boxeador, o jovem distraído que trazia dentro de mim estava atônito, sem fala. Alguém, ainda que de forma especialmente carinhosa, acabara de denunciar o idoso.

Arranquei, enfim, em busca do centro. O jovem interiorizado, já refeito do golpe, não se rendeu, puxou assunto: - "Liga, não, vida que segue, meu velho."

* Roberto Costa é associado do Avaí FC

2 Comentários:

Anônimo disse...

Excelente. Acho que todos nós passamos por momentos semelhantes que, como descrito acima, com a maestria de sempre, mesmo que com intenções valiosas nos trazem a realidade esquecida ou deixada de lado pelo nosso afã de não contar, com tanta precisão, os anos passados.
Algumas situações são mais corriqueiras, mais frequentes, como a que me fez sentir a realidade, quando alguém me ofereceu o lugar no ônibus.
No momento lembrei que alguém havia me falado "a gente sabe que está velho quando alguém oferece o lugar no ônibus".
Bighal.

Anônimo disse...

Valeu, Bighal. Grande abraço do mano. - Roberto Costa

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