CAÇADOR, by Roberto Costa
É coisa da era dos doze anos. Na manhã de
sol eu estava defronte à fachada amarelo-gemada da sorveteria do Nilton, quando
vi que se aproximava o Varner. O Varner tinha quinze anos e todas as vantagens
de três anos a mais sobre mim. Era pálido e magro, mas não era fraco, já jogara
no time da turma grande. Vendia bananas recheadas com um balaiozinho que levava
a tiracolo e vendendo conseguira enturmar-se com o pessoal da nossa rua. A
roupa precária que usava e alguns cacoetes no falar traíam a sua condição de
morador de bairro pobre.
Havia de ser seu dia de folga, pois não
portava o balaiozinho do ofício. Chegou falando do vento e das ondas na baía
norte. Depois, com estudada displicência, sacou do bolso traseiro da calça
surrada a funda e de um bolso lateral algumas bolinhas de argila que produzira
endurecidas ao sol. Municiou a funda com uma das bolinhas e, mirando a parede
de uma casa, esticou por duas vezes ao máximo as duas pernas de elástico, sem
desfechar o tiro. Um mero exercício de força e estilo para meus olhos ingênuos.
Em seguida falou:
- Podes até dizer que é conta de
mentiroso, mas já matei sete passarinhos com esta funda.
- Sete?!
A minha alma de menos três anos certamente
exagerou no espanto. Ele, esperto, completou:
- E para cada um que eu mato faço uma
marca de canivete no cabo da funda, olha aí.
Conferi as marcas e devo ter ficado
fascinado, é que lembrou-me algo parecido. Numa história de gibi um pistoleiro
de Tombstone fazia marca em seu coldre para cada homem da lei que abatia.
Eu achava coisa muito difícil acertar um
passarinho. Todas as minhas tentativas haviam falhado. Quando não um movimento
meu a mais, era um graveto que estalava sob meu pé fazendo fugir a presa. Nas
vezes em que cheguei a disparar fiquei apenas com o consolo de ter errado por
pouco. Como é que o Varner conseguira matar sete?
Como um boxeador a se exibir num treino o
Varner continuou a esticar a funda, mirando vários alvos alternadamente sem
desfechar nenhum tiro, até que, achando bom o momento, disparou contra o muro
de uma casa. Do impacto ouviu-se um som seco e a bolinha de argila desfez-se em
vários pedaços. De novo a minha alma de menos três anos :
- Quer vender a funda?
A proposta soou como música aos ouvidos do
Varner, desde o princípio era só o que ele pretendia ouvir.
- Vendo. – Ele disse prontamente. – Por
três cruzeiros.
Três cruzeiros, tudo que eu tinha no bolso
eram três cruzeiros, o preço de três sorvetes de creme ou ameixa, meus
preferidos. Queria muito a funda, mas pensava em salvar pelo menos um sorvete.
- Dou dois.
- Fechado. E te dou também as bolinhas.
Agora passa o dinheiro.
À noite tive dificuldades para dormir.
Talvez porque não me saíssem da cabeça as vezes sem conta em que fui à caça
voltando sempre sem sucesso. Doze anos e nenhum passarinho abatido, era
preocupante. Olhei a funda, que repousava com suas sete marcas ao lado do
travesseiro e prometi a mim mesmo que dia seguinte acabaria com o jejum.
Eram duas belas propriedades de bom
tamanho, compostas de mata natural e campos, preservadas no meio da cidade.
Compunham um pequeno feudo e faziam a alegria da gurizada. Pela manhã o sol
banhou o mato de luz e a mim encheu de esperanças. Sai a campo, esgueirando-me
para os lados da campina onde a grama era alta. Amoitava-me debaixo de cada
árvore, os passos cautelosos, a funda carregada.
Foi na aroeira que a primeira oportunidade
surgiu. Um distraído sabiá pousara num dos ramos da copa. Apoiei-me no tronco,
a perspectiva era boa, enquadrei-o no vértice da forquilha e disparei. A
bolinha passou a cinco centímetros do alvo, que fugiu.
Um cinamomo, então, me pareceu de
encomenda. De boa altura, tinha ao redor de sua base uma massa de arbustos de
médio porte formando um esconderijo sombreado e natural. Ocultei-me ali e
fiquei à espreita. Não demorou e um anu veio ter sobre um dos galhos do
cinamomo. Eu o vi balançar no pouso impreciso. Possuía um topete ridículo e cores
feias, terrosas. Mas pouco importava sua feiura, era um pássaro e eu precisava
derrubar um. Assestado o alvo, disparei. Para minha surpresa o anu desceu em
parafuso, caindo sobre a grama macia. Fora atingido em sua coxa direita, o
ferimento visível. Quanta emoção suporta o peito de um menino? Era meu primeiro
troféu, abatido sobre o chão. Tonto de glória, não entendi a natureza daquele
troféu, seu peito arfante e seus olhos que me fixavam indignados.
Um fio de medo levou-me a suspendê-lo pelo
rabo, talvez eu temesse o calor do seu corpo, a condenação da massa viva e
ofendida. Mesmo combalido, batendo suas asas ele desvencilhou-se, deixando-me
com duas penas na mão. Não foi longe, pousou ofegante num galho baixo de
espinheira. Eu, caçador, cheguei até ele e de muito perto desfechei o golpe de
misericórdia, que o atingiu na cabeça. Então os saltos desconexos da agonia de
repente me impuseram o pânico. Que loucura eu acabara de cometer! Eu não era
caçador, eu era um menino e o animal indefeso se acabava, morria pelas minhas
mãos. Juntei-o do chão em seus últimos estertores e corri pra casa, aos prantos.
Água fria sobre sua cabeça não o reanimou.
A mãe, aos gritos chamada a resolver, talvez com alguma sabedoria de adulto,
apenas ditou o veredicto, não tem mais jeito, está morto.
As partes moles da funda cortei em
pedaços, a forquilha com suas sete marcas fatídicas joguei às chamas do fogão à
lenha.
* Roberto Costa é associado do Avaí FC
4 Comentários:
Não consigo nem mais comprar siri vivo no mercado de peixe de Itajaí... Nós carnívoros estamos ficando moles... Lindo texto! Quase chorei imaginando o olhar do pássaro ferido...
Grato, Adriano. - RC
Adriano Basco,
Assino contigo. Felizmente, o RC abandonou a carreira de caçador para se dedicar às letras..
Mereces, RC!
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