TENSÃO NA NOITE, by Roberto Costa
Quem, lá pela segunda metade da década de 60, por conta da magia do ato de namorar, nunca perdeu um último ônibus da noite? É claro, havia sempre um amasso a mais pra dar, um último beijo de despedida, que nunca era o último. E quando o ônibus passava ao largo, sem dar a mínima para o cliente distraído, o jeito era relaxar o espírito e curtir um pouco mais os carinhos da amada, antes de palmilhar, salvo a sorte de uma providencial carona, uns bons quilômetros sobre a dureza dos paralelepípedos da antiga Floripa.
Aconteceu comigo. Não sei que diabólica tecnologia possibilitara fazer, naquele tempo, um busão tão enorme e tão silencioso. Altas horas, eu namorava na Agronômica e residia na Duarte Schutel, área dos altos da Felipe Schmidt. Seis a sete quilômetros, calculo, a distância entre esses dois polos. Então, sem um reles rangido, sem um mísero som de pastilha de freio gasta, sem uma mínima cantadinha de pneu que me pusesse de sobreaviso, o busão passou, célere, azul, enorme, indiferente. Última corrida, o motorista, pensei comigo, tinha urgência de cair nos braços da amada, só podia ser. Então, feitas as derradeiras despedidas, botei o pé na estrada, no rumo de casa.
Nem bem caminhara cem metros e, súbito, quebrando o silêncio da noite, ouvi o som de um motor de carro antigo. Uma camionete Ford, um fordeco velho, daqueles de rodas raiadas, com carroceria de madeira, que costumamos ver nos filmes de Chaplin, se aproximava. Desenvolvia pouca velocidade, talvez pelos inúmeros anos de trabalhos forçados e desgastes. Diante da geringonça ambulante, tive dúvidas se pedia ou não carona. Mas arrisquei acenando e o fordeco encostou. À Janela da apertada cabine, um velho muito magro e ao volante, um volumoso negro, um enorme Buda de ébano.
- Quer carona? - Perguntou o negro. - Posso te deixar no centro. - Acrescentou, demonstrando boa vontade.
Aceitei, encurtaria o trajeto. O velho abriu a porta, que era de madeira, e fechava-se com um trinco rudimentar. Aproximou-se do motorista, cedendo-me espaço no acento. Em seu movimento bateu com os pés numas barras de ferro que estavam no chão, as quais tilintaram e num cachorro que dormia sob o banco. O cão protestou com um leve ganido, então o velho acertou-o pra valer com o calcanhar e ele ganiu mais forte. Entrei, mas comecei a ficar preocupado. Tudo indicava serem pessoas de grosseiro trato, concluí, e que serventia podiam ter aquelas barras de ferro soltas no chão? .
Nas proximidades do Estádio Adolfo Konder o Negro perguntou-me: - O amigo trabalha com o quê?
Achei que confessar-me estudante não o impressionaria o suficiente e da maneira que eu pretendia. Minha identidade tinha sido expedida pelo Exército e continha o nome e a assinatura de um tal tenente Nogueira, certamente um burocrata responsável pela expedição do documento.
- Sou tenente do Exército. - Falei, colocando um pouco mais de energia na voz.
- É mesmo? - Um toque de ironia na voz do Buda me fez crer que não acreditou. Encostou o fordeco e pediu-me a identidade. Passei-lhe o documento. Ele acendeu uma lanterna que trazia consigo e com ajuda do foco fez a leitura.
- O moço tá pensando que a gente é bobo. - Ele disse para o velho, que pôs-se a rir um riso ridículo. - Não brinca com a gente, não, moço. A gente não tem nada a perder, a gente é do esquadrão da morte, já ouviu falar? - O velho, sacudindo-se, riu de novo, traindo em si um toque de idiotia, que mais aumentou minha preocupação. O esquadrão da morte marcara presença nos noticiários da época pelos assassinatos truculentos que realizava.
O negro recolocou o carro em movimento. Decidi que o melhor a fazer seria ficar atento, mas calado. Subindo a avenida Trompowsky o Buda, aumentando minha tensão, uma vez mais parou o carro e disse, apontando com propriedade: - Aquela ali é a casa do Almirante. Tá vendo como a gente tá por dentro de tudo por aqui?
O fordeco seguiu e finalmente comecei a ficar mais confiante vendo que de fato tomava o caminho do centro. Quando, enfim, descíamos, passando diante do palácio rosado, então palácio do governo estadual, eu disse: - Aqui, pra mim tá bom. - Considerando a lerdeza do fordeco, preparei-me para, em desespero, saltar do carro em movimento, caso o Buda não estacionasse.
Mas ele prontamente atendeu meu pedido, parando o fordeco e perguntando: - Aqui pro senhor tá bom, tenente? - E desmanchou-se numa gargalhada que o sacudiu por inteiro, acompanhado pelo velho, com sua risadinha idiota.
* Roberto Costa é associado do Avaí FC
Quem não conta um conto não vale um conto!
Grato uma vez mais, Adriano.
André, o fordeco era um pouquinho mais moderno, mas mesmo esse ficou legal. Abraço. - RC
Adriano Basco,
É verdade...
RC,
Até imaginei, mas pela tua descrição, acho que serviu...
Abraço!
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